Exército do Egipto mandou médicos operarem manifestantes sem anestesia

Exército do Egipto mandou médicos operarem manifestantes sem anestesia

Há muito tempo que os manifestantes egípcios deixaram de cantar “povo e exército, uma só mão”, como fizeram na queda de Hosni Mubarak, e cada vez se percebe melhor porquê. Há um ano, nos confrontos de Abbassiyah, as chefias militares ordenaram aos médicos que operassem os manifestantes feridos sem anestesia, diz um relatório já entregue ao Presidente Mohamed Morsi e ao qual o Guardian teve acesso.

O objectivo da investigação, realizada por um comité de 16 pessoas, incluindo advogados, activistas e familiares das vítimas, era averiguar as acusações que se têm acumulado contra polícias e soldados, desde o início da revolta contra a ditadura, no início de 2011. O diário britânico leu o documento e começou a noticiar algumas das suas conclusões, tendo escrito na quinta-feira que as Forças Armadas participaram em desaparecimentos forçados, tortura e assassínios por todo o país. Isto acontece desde o início dos protestos, quando os generais declaravam a sua neutralidade e prometiam proteger o povo.

As conclusões sobre Abbassiyah, publicadas esta sexta-feira no Guardian, descrevem como médicos, soldados e enfermeiros agrediram feridos dentro do hospital militar de Kobri el-Qoba, no Cairo. Um médico citado no relatório diz que depois das agressões, um oficial “mandou os seus soldados trancar os feridos na cave do hospital”.

“Médicos militares, soldados e médicos dentro do hospital atacaram os manifestantes batendo-lhes violentamente e agrediram-nos verbalmente”, descreve o mesmo médico. Esta e outras testemunhas asseguram que houve ordens de oficiais aos médicos para que estes “não dessem quaisquer anestesias durante tratamentos ou pontos”, e “não limpassem feridas”.

Já antes, nos confrontos de Novembro e Dezembro de 2011, os manifestantes na Praça Tahrir tinham medo de mandar os seus feridos para hospitais militares e de os colocar dentro das ambulâncias.

“Este relatório tem uma importância enorme. Até agora, não houve nenhuma admissão oficial de uso de força excessiva por parte da polícia ou dos militares”, disse ao Guardian Heba Morayef, directora da Human Rights Watch no Egipto. “O Exército diz sempre que esteve ao lado dos manifestantes e nunca disparou uma bala contra eles. Este relatório é a primeira condenação oficial das responsabilidades dos militares.”

Os confrontos de Maio do ano passado em Abbassiyah, bairro do Ministério da Defesa, começaram com protestos contra os militares, que depois da queda de Mubarak usurparam o poder. Pelo menos dois manifestantes morreram e perto de 400 ficaram feridos.

Outra denúncia dos manifestantes que este relatório confirma é o recurso aos chamados baltagiya, homens pagos para se infiltrarem nas manifestações e lançarem a confusão. Mubarak banalizou o uso de jovens contratados em bairros pobres ou retirados das prisões para atacar a população; o Exército continuou a fazê-lo.

“O comité pôde confirmar a cumplicidade entre as forças de segurança, as Forças Armadas e os baltagiya”, lê-se no relatório, onde se citam testemunhos, fotografias e vídeos que mostram estes homens, envolvidos nos confrontos, sentados à conversa com oficiais, dentro de viaturas militares ou a comer comida do Exército.

O documento de mil páginas foi entregue ao Presidente islamista em Janeiro, mas Morsi ainda não o leu – as conclusões estão agora a ser analisadas pelo procurador-geral. Os seus autores esperavam que já tivesse sido tornado público.

Público